«A seca é dramática»
Victor Louro é Ponto Focal da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação e presidente da Comissão Nacional do Programa de Combate à Desertificação. Engenheiro silvicultor de formação, trabalha, actualmente, como técnico superior na Direcção Geral dos Recursos Florestais. Considera dramática a actual situação de seca. E tem propostas concretas a defender. É apologista de um uso mais eficiente da água e de uma acção participada e concertada, que reúna competências e saberes. Por isso apela à criação de um Sistema Permanente de Observação das Secas, valoriza estratégias locais como a das Furnazinhas, em Alcoutim, e projectos científicos, como o DesertWatch.
Quercus Ambiente O que é o Programa de Acção Nacional de Combate à Desertificação e quais são os seus eixos de actuação?
O Programa de Acção foi elaborado em 1998, através de um processo muito participado, com mais de cinquenta e cinco reuniões e sessões, e a participação de mais de 2200 pessoas. Creio que esta é uma marca que distingue o processo português de muitos outros processos, e que está absolutamente em consonância com a orientação da própria Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação, que exige que se faça de baixo para cima. No plano internacional é reconhecido como um processo verdadeiro. Que é efectivamente participado e não alegadamente participado... O Programa foi depois aprovado em 1999 e contém cinco eixos de acção: conservação do solo e da água, manutenção da população activa nas zonas rurais, recuperação das áreas mais ameaçadas pela desertificação, investigação, experimentação e divulgação, e integração da desertificação nas políticas de desenvolvimento.
Um ano depois foi constituída a Comissão Nacional de Coordenação do Programa. Como é uma comissão inter-ministerial, demorou muito tempo a obter a designação dos representantes dos ministérios. A Comissão adoptou a experiência da fase anterior e integrou as sub-comissões regionais, na certeza de que o combate à desertificação não se poderia fazer a partir de Lisboa, era preciso contar com as pessoas que estivessem no local. Esta tem sido uma experiência muito rica que nós desenvolvemos a partir de cinco áreas piloto, ligadas às sub-comissões regionais. Aliás de quatro. E depois, por iniciativa da sociedade civil, de uma associação de desenvolvimento local que nos contactou, a Credo, constituímos uma quinta.
Quais são essas áreas piloto?
As áreas piloto são: no Douro Internacional, seis freguesias do concelho de Mogadouro; no Pinhal Interior Sul, Mação; na Margem Esquerda do Guadiana, Mértola; na Serra Algarvia, Alcoutim e uma parte de Castro Marim; e a quinta área na zona de Idanha-a-Nova. O processo das áreas piloto avançou com a realização de um workshop em cada uma das quatro áreas iniciais. Workshops com a participação de entre
E no que tem dado esse processo?
Nós temos resistido desde a primeira hora ao dirigismo. E, portanto, o processo tem sido muito motivado. Mas, a Comissão Nacional, nesta vertente, apenas tem apoiado as sub-comissões regionais. O trabalho feito é o que cada uma delas tem conseguido fazer. Isto tem-nos permitido, e era claramente a intenção, não ter só um processo, deixar desenvolver e motivar vários processos. Hoje estamos em condições de analisar cada um deles, e ver por exemplo que um deles falhou.
Qual é que falhou?
O processo de Mação, ao contrário do que eram as expectativas. Apesar de todos os instrumentos que foram postos à disposição para actuarem no concelho de Mação, não se conseguiu desenvolver o trabalho. Ainda estamos a fazer a análise das razões na Comissão, mas é preocupante observar como apesar de haver meios, pode não se conseguir desenvolver o trabalho.
E quanto aos outros casos?
No outro extremo, está a área piloto de Alcoutim, que mercê de uma associação desde as primeiras horas a uma associação de produtores florestais, e a uma grande atenção quer da Comissão de Coordenação de Desenvolvimento Regional (CCDR) quer especialmente da Direcção Regional de Agricultura, tem desenvolvido um trabalho que começa a ser notável. O mais recente e mais significativo ponto desse trabalho é a Estratégia das Furnazinhas Contra a Desertificação. É um processo curioso. Porque, um dos principais problemas que tem sido detectado, logo aliás na fase de preparação do Plano de Acção Nacional, tem a ver com o eixo cinco de integração da desertificação nas políticas de desenvolvimento. Há uma enorme dificuldade, quando não impossibilidade, em fazer a articulação das diferentes entidades, e mesmo dentro da mesma entidade entre departamentos diferentes. O que é curioso é que aqui estamos a conseguir fazer a caracterização disto e a modificá-lo.
De que forma?
Motivando a população local para tomar posição. Em Outubro do ano passado fez-se uma reunião nas Furnazinhas, em que participaram alguns habitantes locais, agricultores e outros, simples reformados, e um grande número de autoridades, a Direcção Regional de Agricultura, a CCDR, os presidentes das câmaras dos dois concelhos, em pessoa, e também as várias associações de desenvolvimento local, como a Odiana, Terras do Guadiana e a In Loco, e ainda a GNR, os bombeiros e professores das escolas secundárias. E, no fim de uma manhã de discussão, os presidentes das câmaras e o sub-director regional de agricultura, foram encarregues de elaborar um plano integrado para dar resposta à situação. Trabalhámos depois na elaboração desse plano integrado, já com a participação activa das associações, que têm uma larga experiência e com a participação efectiva dos presidentes das câmaras. No dia 1 de Fevereiro de 2005 estávamos a fazer uma nova reunião, em que participaram praticamente as mesmas pessoas locais e todas as autoridades que estiveram presentes da primeira vez, mais algumas que não tinham estado, por exemplo o Centro de Emprego. E aí demos conta desse plano integrado.
Que focava que eixos ou que acções?
Tecido económico, social e associativismo; educação e escolas; floresta e incêndios; e agricultura. Tem 39 linhas de trabalho.
Portanto da primeira reunião saíram ideias para o plano, depois foi elaborado e apresentado...
Exactamente. O plano foi trabalhado basicamente pela Sub-Comissão Regional e pelas associações, que emparceiraram com os professores, que participaram activamente e com os presidentes das câmaras, que participaram efectivamente, estão aqui uma série de ideias que foram sugeridas por eles. E saímos dali com um compromisso, justificado pela própria participação daquelas entidades todas, das pessoas que estavam interessadas em participar e fazerem o que estivesse ao seu alcance para a concretização das medidas. Ficámos com o compromisso de dar informação pública sobre a evolução do processo.
Quem é que vai aplicar o plano?
O plano tem que ser aplicado por toda a gente que tem a ver com ele. A habilidade está em fazer com que cada uma das entidades que tem poder, dê aquilo que lhe compete. Dando um exemplo, um dos estrangulamentos é que para criar uma empresa ali onde há meia dúzia de pessoas, que são os sobreviventes, tem que se dar os mesmo passos que para criar um supermercado na capital. Isto é anacrónico. Ora, há possibilidade de simplificar alguns destes passos. E a Direcção Regional de Economia, mais a CCDR, mais a Direcção Regional de Agricultura, com um pequeno grupo de trabalho, podem tomar medidas que permitem essa simplificação. A modificação das coisas é um cabo de trabalhos. Estamos a consegui-lo, porque sentámos as pessoas à mesa. E ficou esclarecido que o processo de trabalho que íamos ter era este: aquilo que não se conseguir resolver, ao nível da mesa de trabalho, com várias entidades, sobe para cima, para pôr em presença dos presidentes ou dos responsáveis dessas mesmas entidades, e depois se for preciso para o ministro ou para os deputados. E, neste processo, se em 39 linhas de trabalho conseguirmos resolver metade, estamos já a falar de 19. E garanto-lhe que resolver 19 coisas ali, contribui de facto para modificar a situação das pessoas. Já temos também a motivação do director do Centro de Emprego, que logo disse que tinha uma série de instrumentos que podia aplicar, e da Associação Portuguesa de Microcrédito. Quer dizer, nós não estamos a descobrir nada. Estamos simplesmente a lançar mão do que existe e a aplicá-lo efectivamente, modificando o que é necessário. Quando é que se poderá avaliar os resultados desta estratégia?
No dia 17 de Junho, que é o Dia Mundial de Combate à desertificação, temos o compromisso de apresentar publicamente o ponto da situação.
Passando das áreas piloto para o nível nacional, que actividade tem sido desenvolvida?
Ao nível nacional, nós temos tido uma actividade com diversas facetas. A maior é sem dúvida a da sensibilização. Hoje, a quantidade de iniciativas para que somos chamados não tem comparação com a de há três anos atrás. Depois, isto tem motivado muito interesse no plano científico. Temos um fruto bonito, notável, deste processo participativo, que foi a elaboração da Carta de Susceptibilidade à Desertificação. Resultou de um projecto internacional em que participámos, auto-financiado. Distinguimo-nos e liderámos claramente este projecto. Conseguimos juntar meia centena de cientistas e técnicos.
Portugueses?
Portugueses. Trabalhámos em quatro áreas temáticas diferentes: solos, vegetação, clima e socio-económico. Fizemos diversas discussões gerais, reuniões. Ora bom, todas as pessoas se revêem na Carta, porque viram as suas opiniões de facto integradas. E mais, conseguimos pôr em conjunto e a discutir, gente de "capelas" diferentes. Isso fez com que criássemos a OCPCD, a Organização Científica Portuguesa para o Combate à Desertificação. O ano passado, portanto um ano depois, fizemos um workshop, convidando de novo as mesmas pessoas e mais outras, para dar oportunidade a novas análises. Mas não se considerou necessário adoptar outros indicadores. Neste momento estamos a participar num projecto... bom, em vários, mas um teve o desenvolvimento de um trabalho que no plano internacional é muito considerado. A Agência Espacial Europeia deu o primeiro passo em Dezembro de 2003 para o projecto DesertWatch, que é um sistema de acompanhamento da desertificação a nível do Mediterrâneo, mais exactamente do Anexo IV (a Convenção aplica-se por anexos regionais, o Anexo IV é o do Mediterrâneo Norte) que é aquele a que nós pertencemos. Nós preparámo-nos para concorrer. Quando tínhamos a equipa constituída (e trabalhar com a Agência Espacial não é brincadeira, era um milhão de euros que estava em causa), preparámo-nos bem, no fim não pudemos concorrer porque Portugal não tinha pago a cota... Portanto ficámos pelo caminho como fazedores do projecto, mas participo eu como Ponto Focal, e a Comissão Nacional toda, e temos, como os outros países, um especialista no comité de especialistas que acompanha o consórcio.
Quem é o especialista?
É o Lúcio do Rosário, que é o coordenador do estudo «Indicadores de Desertificação para Portugal Continental». Apurámos uma tal metodologia com este trabalho, que somos o único país que está a tirar um proveito total daquele projecto. Vão aplicar a cobertura em todo o país, enquanto que nos outros vão aplicar a uma parte muito pequena. A entidade acolhedora do sistema vai ser a Direcção Geral de Ordenamento do Território (DGOT). Vai ser um instrumento óptimo para eles, porque têm o Plano Nacional de Políticas de Ordenamento do Território que têm de monitorizar. E tudo à borla. Isto para dar exemplos do que temos conseguido. Só por uma razão, por termos um processo verdadeiramente participado. Sério, consistente, coerente, consequente, em que o que fazemos hoje dá depois para aproveitar para amanhã para uma algo mais avançado, como é este caso.
Passando então agora para a questão da seca, que avaliação é que faz da situação?
A questão da seca é dramática. É muito mais dramática do que a fazem, do meu ponto de vista.
Mais dramática?
Sim, oficialmente não é, mas acho que é um erro estar a tratá-la assim. Porque a verdade é que havia esperança que o mês de Abril fosse ao menos próximo da média, e o que choveu foi nada. Portanto a situação era má e está pior. E há uma questão que não percebo porque é que não é abordada, que é a seguinte: estamos a reagir como se em Outubro fosse chover. E eu pergunto: e se não chover? Não chover é disparatado? É tão disparatado como não chover em Abril.
Portanto não há medidas que tenham isso em conta?
As medidas que estão desencadeadas não dão resposta a este problema. Está tudo orientado para ultrapassar o Verão.
E que medidas é que poderiam então ser tomadas?
De um modo geral, têm de ser medidas que conduzam à economia da água. Agora. Nas nossas casas, em Lisboa, no Porto, não temos consciência de que a seca nos diz respeito. Nas nossas câmaras também não. Temos que usar a água com muito mais eficiência. Se eu puder lavar a boca com um litro de água não preciso de gastar cinco litros. Estou a dizer a minha boca. Mas se puder regar os jardins de Oeiras com meio milhão de litros em vez de ser com um milhão, já muda a escala. E de facto Oeiras, por acaso, adoptou agora um sistema de rega que reduz a metade o consumo. Bem, então o exemplo de Oeiras tem que se multiplicar por esse país fora. Há ainda a questão das perdas de água nas canalizações. Tem-se por normal que 30% seja perdido. Isto é inconcebível. Tanto mais inconcebível quanto o futuro vai ser pior que o passado. Vamos ter mais situações destas.
Porquê?
Porque os cenários mais credíveis das alterações climáticas apontam nesse sentido. E repare, nós já tivemos 2003, já tivemos 2004, estamos a ter o 2005... Nós organizámos no Dia Mundial da Água, no mês passado, um colóquio exactamente sobre «Aprender com a Seca deste Ano»,
Perspectivas diferentes sobre a seca?
Perspectivas diferentes sobre a seca. E eu digo, não é na perspectiva diferente que está o mal. Pelo contrário. Essas perspectivas são reais, correspondem às competências das instituições e portanto é necessário que existam. O que é imprescindível é que exista um órgão de coordenação que fale a uma só voz com a sociedade.
E qual pode ser esse órgão?
Fruto exactamente deste seminário, a Comissão Nacional aprovou, depois, uma proposta ao governo para a criação de um Sistema Permanente de Observação das Secas, que integre e articule as diversas entidades. Esta organização veio-me à cabeça ao participar numa das realizações internacionais da Convenção em que tive contacto com experiências de outros países. Fiquei a saber, por exemplo, que o Senegal tem um sistema de alerta precoce da seca que lhe permite, com base na interpretação de imagens de satélite, encaminhar os pastores, que são nómadas, para as áreas onde tem mais possibilidade de alimentar o gado, portanto onde a vegetação está melhor, e desviá-los das zonas mais críticas. Um país em desenvolvimento, assim dito, tem uma coisa destas, e nós, país desenvolvido, é o que se vê. Se tivéssemos este sistema de observação permanente tínhamos dado por esta seca no final de 2003.
O que é que nos falta para ter tal sistema?
Que seja criado. Nós não precisamos de ir buscar, de ir comprar mais nada. Temos tudo. O que temos é de pôr isso ao serviço de objectivos. Isto não é para acabar com a seca. É para vivermos com ela. De uma maneira coerente. Que não tem que se estar a inventar cada vez que há seca. Mas eu ia dizer: podíamos ter dado por esta seca no final de 2003. Deixámos passar o 2004 todo. E o governo só reagiu em 31 de Janeiro de 2005. Mas entre Dezembro e Fevereiro de 2005, o que nós ouvimos foi duas instituições, a Meteorologia e o INAG, uma a dizer que havia seca, outra a dizer que não havia seca. Como é que um ministro se pode aguentar no meio disto? Ora bom, com um sistema permanente, a coisa muda de figura. Porque desde logo tem que haver uma política de comunicação.
E quem é que poderia coordenar tal sistema permanente?
Isso é com o ministro. Agora, é um sistema para o qual apontámos algumas características. Muitos julgam que esta Comissão para a Seca que foi agora criada, que é a formalização do grupo de trabalho que existia, que já é resposta. Não é. Porque esta é constituída por um conjunto de entidades da administração central. É preciso mais do que isso. Tem que haver outros saberes. Porquê? Porque estas entidades, estas e outras quaisquer, têm naturalmente a tendência para se auto-justificarem. E aquela que tem mais força impõe-se às outras...
Seria importante a participação de organizações da sociedade civil?
Absolutamente. Porque não pode prevalecer a definição de determinada direcção de serviços ou do instituto tal. Porque há outras formas de ver o problema. É o que diz o nosso documento: «que preveja a participação de outras entidades representativas de saberes técnico-científicos e de interesses colectivos». Se as organizações de agricultores tivessem assento numa comissão destas, não se tinha passado isto. Porque logo que essas organizações detectassem que o problema existia, queriam saber que medidas podiam tomar. E a desgraça foi esta porque ninguém disse aos agricultores em tempo útil: «tenham cuidado porque se calhar vamos ter uma seca grave». Porque nessa altura eles podiam ter escolhido outras culturas, outras actividades, podiam ter vendido gado a tempo, etc. Podiam ter comprado palha a tempo sem ser ao preço a que estão a comprar, etc. Mas ninguém disse nada, porque se opta por "não há problema". E há problema.
Para finalizar: foi recentemente publicado o livro «Desertificação - Sinais, Dinâmicas e Sociedade» que foi coordenado por si...
Sim, saiu no ano passado, foi para comemorar o 17 de Junho do ano passado. E insere-se no esforço que temos vindo a fazer para sensibilizar os diversos actores para esta problemática.
Reúne as várias perspectivas da desertificação?
Contém uma série de perspectivas, que são muito diversas, e que mostram como coisas tão diferentes como a floresta, o ordenamento do território, os métodos tradicionais para diminuir a pobreza, a história agrícola do Alentejo, a economia social, o cooperativismo, são vias de esclarecimento sobre o processo da desertificação e também instrumentos de combate.
Sofia Vilarigues
QUERCUS Ambiente nº. 14 (Maio/Junho de 2005)